"Somos oficialmente esquizofrénicos"

Diogo Infante defende a "sua" maldade. Margarida Marinho não quer pensar em audiências. Miguel Guilherme dispensa personagens cómicas. A dois dias da estreia na TVI de "Mundo ao Contrário", a <strong>Notícias TV</strong> juntou em exclusivo os protagonistas da novela. Que têm em comum a paixão pelo o teatro.
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Diogo, que mauzinho...

Diogo Infante (DI) - Não sou nada [risos].

Na novela é...

DI - Se quisermos ser maniqueístas, sim. Eu sei que há sempre os bons e os maus, mas não olho para a minha personagem [Pedro] dessa perspectiva. Tento não interpretar o mal, mas sim as razões que a levam a agir de determinada maneira para que possa ser convincente nas suas razões e motivações.

Já está a defender o Pedro. Quais são as motivações e razões que levam esta personagem a ser gananciosa e sem escrúpulos?

PI - É por causa desta senhora aqui [aponta para Margarida Marinho, que interpreta a mulher de Pedro, Constança]. É evidente que a maldade e a bondade coabitam na natureza humana e eu recuso-me a ser simplesmente o mau. Acho que o Pedro tem fortes razões para agir como age e, como nós não sabemos muito bem o que vai na cabeça dos autores, é bom manter alguma margem de ambiguidade. Das duas, uma: posso tornar-me rapidamente um psicopata ou, quem sabe, um santo [risos]. Nunca sabemos para que lado é que isto pende.

Boas e más personagens que se aproximam da natureza humana e, mais uma vez, uma morte logo no primeiro episódio. Mundo ao Contrário vai ser mais uma novela da TVI ou difere das anteriores em algum aspeto? Sem ser o argumento, claro.

Margarida Marinho (MM) - Cada proposta que é feita é sempre um desafio, e não considero que haja uma diferença significativa. O formato é o mesmo. O que acontece de diferente é o espírito que marca a nossa vontade de querer fazer uma novela real, sendo que poderia haver um tom mais contrastante ao nível das diferenças sociais.

Sente isso com a sua personagem?

MM - Sinto, na medida em que a Constança é o meu barómetro na novela. Ela é mal-amada, uma mulher que pertence a uma classe alta e que, de repente, se vê sem nada. E este nada é mesmo nada. Isso obriga-a a renascer, a recapitular a sua vida relativamente aos bens materiais, aos seus valores morais e a perceber o que é mais importante. Este renascimento é baseado numa palavra: crise. Esta crise acontece a nível emocional e financeiro, ao mesmo tempo que há um quadro também de crise no bairro operário onde a novela se movimenta. A crise desta personagem acontece num cenário de crise global.

É a aproximação à novela da realidade do país?

MM - É um pais real, sim. Não é um local onde há apenas ricos e pobres, mas uma mulher que era rica e que ficou pobre num mundo que também está pobre, onde há dificuldades, onde é difícil arranjar emprego e onde ela vai ter de se confrontar com o choque de hábitos culturais e de códigos de linguagem que são completamente diferentes.

É aí que o mundo fica ao contrário?

MM - Completamente. Mas a Constança é uma lutadora. Ela vai experimentar situações de grande embaraço porque se sente deslocada, sai da sua zona de conforto para uma outra onde se sente humilhada.

Ou seja, vai virar frangos com o Miguel?

Miguel Guilherme (MG) - Não sei.

MM - Ainda estamos à espera de ver o que ela vai ter de fazer para sobreviver.

MG - Bem... há uma personagem, que é a irmã [Sara Barradas] da Constança, que vai trabalhar para lá.

A personagem do Miguel faz parte das que vivem a crise?

MM - Mais ou menos...

MG - O Simão é um self made man, que foi empregado numa loja de frangos e que de repente enriqueceu. Mas ele não renega esse seu passado. Não é um burgesso, mas não é também um tipo com berço, apesar de ter dinheiro. Ele recusa-se a abandonar a primeira loja que teve nesse bairro problemático para onde a personagem da Margarida vai viver. Sabem que ele tem cento e tal lojas de frangos espalhadas pelo país?

DI - Cento e tal? Isso é muito frango.

MG - É que em crise as pessoas têm mesmo de comer frango, por isso ele não vai ter grandes problemas. Além disso, ele é um homem muito bondoso. Está sempre a dar frangos, eu nunca o vi a vender.

DI e MM - ... [risos].

Mundo ao Contrário é a segunda novela do Miguel. Doce Tentação, também da TVI, era uma história bem diferente: muito mais fantasiosa, menos real.

MG - Bem diferente. A outra novela era fantasiosa, mas não levava as coisas até ao fim.

Em que sentido?

MG - Não sabia bem o que é que tinha de representar. Aqui é tudo mais coerente porque está tudo mais ancorado na realidade, no dia a dia, uma realidade que as pessoas e eu próprio conhecemos melhor.

Esse é o trunfo da TVI para voltar a dar à ficção do canal o primeiro lugar nas audiências, que tem sido "roubado" pelos remakes e novelas brasileiras da SIC?

MG - Eu espero que a novela tenha sucesso, mas não quero estar aqui a cantar de galo. Acho que tem todas as condições para que isso aconteça.

O Miguel disse, na altura das gravações de Doce Tentação, que a sua passagem pelas novelas era esporádica. Afinal, acabou uma e começou logo esta...

MG - Eu tenho um contrato com a TVI e, em princípio, aceito o trabalho que me dão. A não ser que seja um trabalho de que não goste mesmo. Mas se tenho um contrato é para trabalhar, não é para estar quieto. Além disso, este papel agradou-me.

E o Diogo? Depois de Os Lobos, que fez para a RTP em 1998, não voltou a fazer mais novelas.

DI - Foi há bué... [risos]. A vantagem de ter estado tanto tempo sem fazer novela é que posso desfrutar das experiências de outra forma. Tenho a sorte de contracenar com atores fantásticos e com quem tenho alguma cumplicidade, o que dá jogo e permite potenciar as cenas que temos. Portanto, para já, passado apenas um mês de termos começado a gravar e sabendo que vamos já para o ar, o que é assustador, estou a divertir-me imenso. Depois, gosto muito do Pedro. Eu há pouco brincava com o ser bom ou mau e isso é relativo. O Pedro é um homem que vem de uma família modesta, que se casou com uma mulher de uma família que tem muito dinheiro e berço, e no seio da qual ele nunca foi verdadeiramente aceite. Depois, quer a minha mulher...

Desculpe interrompê-lo, mas o Diogo já está outra vez a defender a sua personagem. Não sei se reparou, mas acaba de falar na primeira pessoa...

MM - [gargalhada]...

DI - Mas isto é verdade... O pai [Sinde Filipe] da Constança não confiava no Pedro...

MM - E ele continua a arranjar justificações para a personagem. O que é verdade é que o Pedro é mesmo manipulador [risos].

DI - Ele só tem de provar a sua mais-valia...

MM - E ainda me perguntam porque é que eu me separei dele [risos].

DI - [continua]... porque é muito desagradável quando não se vê o nosso esforço reconhecido, que é o que acontece com ele. Há coisas que faz com as quais a Constança não concorda e ela resolve bater-lhe. É algo que vou recordar como o maior estalo que levei [gargalhada]. Foi muito bem dado e a verdade é que não doeu.

Como atores, vocês trabalham para que o público, neste caso os espectadores, vos vejam. Preocupa-vos as audiências que a ficção da TVI tem perdido para a SIC?

MM - Não é de todo a minha preocupação. Eu só quero dar o meu melhor e, quando isso acontece, estou muito focada no meu trabalho. Não fico a pensar nisso.

Não é uma responsabilidade acrescida?

MM - Não sinto isso como uma responsabilidade, mas também não me é completamente indiferente. Creio que a questão das audiências e que está ligada ao mercado, tem por base a concorrência e nos mercados, tal como eles sobrevivem, é necessário que essa concorrência aconteça e de uma forma saudável.

É o que acontece? A concorrência entre SIC e TVI é saudável?

MM - Acho que sim. Conheço as pessoas que estão aos comandos da SIC de toda a minha vida, e com as quais eu também cresci. Conheço a seriedade do trabalho delas e respeito-as muito. Da mesma forma que tenho muito respeito pelas nossas equipas técnicas e artísticas, o que faz que haja um sorriso suplementar e uma vontade de ser fazer sempre melhor. A competição, quando é tida nestes termos de respeito mútuo, é ótima. As audiências parecem-me uma falsa questão na medida em que nós não as controlamos.

Pelo menos em teoria, a interpretação dos atores também é razão para que um produto tenha mais ou menos espectadores.

MM - A nossa grande vantagem relativamente a outras equipas, e não quero dizer quais, é termos nesta novela muitos bons atores juntos, o que é raro.

DI - Eu quero acrescentar que a questão das audiências pode ser perversa na medida em que não depende diretamente de nós. Por outro lado, se esse dado estivesse sistematicamente em cima da mesa, poderia condicionar de alguma forma o nosso trabalho, ou levar eventualmente a fazer as coisas de uma outra maneira, se isso fosse possível. O nosso compromisso tem que ver com a qualidade, com o empenho, com o darmos o melhor de nós, com o servirmos a personagem, a história e, no limite, a estação. Se isso gerar boas audiências, seja lá o que isso significa, fantástico. Aqui, o empenho é fazer algo que nos dignifique. Os mecanismos de promoção, de competição... A Margarida disse bem: o fundamental é conviver com respeito entre os vários canais. Eu trabalhei muitas vezes com a RTP em produtos muito pouco vistos, mas nem por isso menores.

O Diogo está a falar-me da RTP, mas no que toca ao mercado publicitário e às receitas, a SIC e a TVI dependem muito mais de audiências do que a RTP.

DI - Naturalmente. Publicidade é dinheiro e é isso que gera as fontes de rendimento. O que acho é que nós não podemos ter esse ónus em cima de nós. Se amanhã isto for um enorme êxito de audiências, não vamos achar que a culpa é nossa, mas se não correr assim tão bem espero que não achemos também que a culpa é nossa. Tudo depende de um conjunto de factores, dos quais os atores são apenas uma pequena parte.

Uma das recentes apostas dos argumentistas têm sido os núcleos cómicos nas novelas...

MG - [interrompe] Olhe, eu não gosto que escrevam nas novelas coisas cómicas para mim, que não acho graça nenhuma. Portanto, uma das coisas que disse foi mesmo isso: Se me vão meter a fazer um papel cómico, não quero.

Porquê?

MG - Porque eu próprio encontro espaço no meu papel para coisas que podem aligeirar a situação. Mas não tenho nada contra esses núcleos, que servem como válvula de escape para determinadas situações.

A Margarida também, mas principalmente o Miguel e o Diogo fizeram carreira em cima dos palcos. São mundos completamente diferentes?

DI - São processos diferentes. Em novela estamos a lidar com um objeto, uma personagem, que não está acabado. A estrutura narrativa é moldada consoante critérios e fatores que nos ultrapassam. O nosso trabalho é criar uma espinha dorsal, e creio que a nossa formação em teatro nos ajuda a fixar essa linha, esse desenho de personagem. Em teatro, o processo é contrário: vamos maturando e analisando até chegarmos à personagem.

MM - Concordo em absoluto. É um jogo completamente distinto, que tem algumas das peças semelhantes mas com regras opostas. Em teatro vive-se do instante, em TV e no cinema vive-se da capacidade de realização, da escolha desses instantes. Mais importante ainda é a velocidade, que em teatro e cinema é mais compassada. Em televisão a velocidade do acontecimento é rapidíssima. Há uma grande ginástica emocional na TV, que é muito curiosa. Temos de passar em pouco tempo por registos opostos e muitas vezes quase que cruéis. Num momento estamos a chorar e no outro a seguir já estamos a rir, ou estamos a fazer uma cena amorosa. Há quase uma esquizofrenia, que aqui é oficial.

Todos os atores são oficialmente esquizofrénicos?

MM - Sim, sim. Todos... Desde que esta frase não seja o título desta entrevista [risos].

DI - [risos]... Oficialmente esquizofrénicos. Porque não?

Quem sabe se não será título [risos]... Muitos colegas vossos dizem que todos os atores deviam passar pelo palco, mas há também quem defenda que não é o teatro que faz um bom ator, mas sim o ritmo acelerado da ficção televisiva. São experiências complementares ou não?

MG - Acho que cada ator tem o seu percurso. Para ser bom não precisa de fazer teatro. Eu comecei em teatro e não consigo deixar de o fazer, é uma segunda pele para mim, mas acredito que há fantásticos atores, cá e no estrangeiro, que nunca passaram pelo palco.

DI - Olhem o Tom Hanks, que se estreou agora na Broadway.

MG - É verdade. Só agora, ao fim de tantos anos. Há atores de teatro que falham no cinema e na televisão, e há outros que se adaptam muito bem.

DI - O que acho que é obrigatório é o compromisso que temos com o que estamos a fazer e levá-lo até às últimas consequências. Se um ator quer fazer apenas televisão, isso é fantástico. Mas que o faça bem, que invista, que perceba as implicações do seu trabalho. Isso é que é importante e digno.

MG - Não é por um ator fazer teatro que o torna mais ator. Acho isso um preconceito enorme.

Ainda existe esse preconceito?

MM - Já não.

MG - Eu acho que existe, mas menos.

MM - Antigamente, era tudo diferente. Não nos podemos esquecer de que com as televisões privadas nasceu toda uma camada de atores novíssimos, que nunca passaram pelo teatro. Eles nasceram, cresceram e se calhar muitos vão acabar na televisão. A maneira como eles se posicionam face ao mercado, face à televisão e até à projeção pessoal, é completamente distinta da minha geração.

Agora existem outras ferramentas.

MM - E outra maneira de estar. Utilizam a própria comunicação social de outra maneira e fazem-se valer de outro programa de interesses.

DI - Eu lembro-me de quando comecei...

MG - Não havia televisão...

DI - Havia pouca. E havia poucos atores a fazer televisão e muito poucos encenadores que permitiam que os seus atores de teatro fizessem TV. Achavam que era uma contaminação. Hoje em dia existem poucos intérpretes de teatro que não passaram já pela televisão.

MG - A nossa geração, e mesmo a anterior à nossa, foi aprendendo com a prática, porque as pessoas de teatro não sabiam fazer televisão.

A Margarida falou da nova geração de atores que se posiciona de uma maneira diferente. Estes novos atores nasceram também com a TV por cabo como uma realidade, o que não é o vosso caso. Aceitavam um projeto para o cabo?

MM, MG e DI [em uníssono] - Se fosse bom.

DI - A questão não é se vamos chegar a um milhão ou a cem mil pessoas, mas se é interessante e se está bem pensado.

MG - Ainda não se consegue diferenciar muita coisa em termos de audiências, mas o cabo, na sua totalidade, já tem mais audiência do que as televisões generalistas.

DI - O caminho é a especialização. Cada vez mais vamos andar a ver coisas nos telemóveis.

MM - Eu vejo mal de qualquer forma, portanto...

MG - E eu cada vez menos televisão em direto. Tirando noticiários, gravo e vou ver apenas o que me interessa. Não tenho de estar à espera. A maneira como se vê produtos audiovisuais está a mudar de uma forma muito rápida.

MM - Pois eu vejo cada vez menos televisão. Leio mais.

Porque a televisão não tem nada de interessante?

MM - Não, porque os livros são tão ou mais interessantes que a televisão.

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